Foi o abraço mais demorado que já tinham dado. Os dois estavam ofegantes e choravam copiosamente. A saudade sufocante pôde, enfim, ser aliviada. Porém, a magia da troca de olhares em consonância com o furor daquele tórrido abraço era suficiente para entender que ambos escondiam no disfarce sombrio daquele instante, algo de misterioso.
Ficaram em silêncio contemplativo por um bom tempo. A emoção falava por si só.
À volta para casa foi rodeada de novidades: Miguel contava a seu irmão sobre a vida no interior de Minas, sobre as mudanças ocorridas ao longo do tempo e sobre como tinha sido a viagem de volta à velha cidade de Folhagem.
- Mano você ainda não me contou exatamente o que te motivou a sair daqui, há dez anos – indagou Zeca, curioso.
- Oh Zeca, tenho muita coisa para te contar. Muita coisa mesmo.
- Desde que você partiu, nosso pai mudou muito. Passa a maior parte do tempo sozinho. Trabalha incansavelmente, como se tentasse fugir da realidade ou como se quisesse esquecer – sem sucesso – um pesadelo que teima em persegui-lo.
Miguel tinha esquecido o quão observador era seu irmão, e de como esse “sexto sentido” havia se desenvolvido ao longo do tempo.
Realmente Zeca não se enganara. Ele sabia que tinha acontecido alguma coisa há dez anos. Não sabia o que era. Mas tinha acontecido.
- Já sei! – sobressaltou Miguel. Vamos passear no lago amanhã? Assim poderemos conversar com mais tranqüilidade.
- Ótima idéia, mano. Também preciso muito falar com você. – concordou Zeca, consternado.
Depois de tanto tempo, Zeca poderia, enfim, contar tudo. Porém, a aflição roubava-lhe o fôlego. “Como Miguel vai reagir a isso?” – Pensava ele, absorto na confusão de seus pensamentos.
Anoiteceu. As poucas estrelas riscavam suavemente a escuridão do céu. Entre o silêncio estridente das poucas palavras, os dois irmãos caminhavam de volta para casa. Ao chegarem, perceberam a movimentação das pessoas. Enquanto uns iam saindo, outros vinham cumprimen-tar Miguel, desejando-lhe boas vindas. Entretanto, eis que ao longe, Zeca avista uma pessoa correndo, num frenesi tal, que aos olhos de um policial, parecia que acabara de matar alguém. Estava num ritmo tão alucinante – com duração de alguns ínfimos segundos – que Zeca não conseguiu enxergar o que na mão ela segurava, ao embrenhar-se pelas espessas árvores daquele bosque inóspito e sinistramente encoberto pela opacidade daquela noite sem luar.Zeca não se atentou para o fato. A alegria estampada no rosto das pessoas - em especial, no de Miguel – era o que interessava agora.
A essa altura, Miguel já mirava – de longe – aquele rosto velho e cansado que vinha em sua direção. Era seu pai, Germano, que de tão distante e introspectivo não havia dado um abraço no filho.- O bom filho a casa torna – disse ele, profuso no sarcasmo na-tural do seu humor negro.- Oh pai, dá-me um abraço – suplicou Miguel, já com os olhos i-nundados pelas lágrimas que, teimosas, já caiam.Os vizinhos já se despediam, e a velha cidade de Folhagem, podia agora, dormir sem a euforia inicial da chegada de Miguel.Dona Beatriz, cansada, já fazia a cama para dormir. Sentia em si, um acréscimo radiante de felicidade, pois seu filho estava, enfim, nos seus braços novamente.Miguel dirigiu-se a seu quarto, exausto. Ao adentrar, acometeu-se de uma forte emoção ao ver a exatidão dos objetos, minima-mente alocados do mesmo jeito que deixara. Aquela velha cama o fez lembrar-se do tempo em que ainda sonhava e das maravilhosas noites, que há muito, não ti
No quarto ao lado, a aflição de Miguel destruía-lhe os nervos.Lembrava – com saudade – do seu tempo de infância, quando ainda brincava de gude com os primos e onde a inocência reinava no coração e nas lembranças daquela felicidade pueril. Até que, por força natural – porém, incompreendida – da vida, foi obrigado a crescer. Tornar-se homem e ser massacrado por um insólito desastre, ao qual se viu perdido e inconformado. Seu pai – única pessoa que sabia de tudo – o aconselhou a deixar a cidade.Os anos se passaram, a cidade esqueceu – pelo menos aparen-temente – da tragédia e Miguel ganhara uma nova vida no local onde se instalara, porém perdeu duas num trágico acidente.Soluçava muito. As lágrimas caiam incessantemente por seu rosto cansado e apático. Contudo, precisava dormir. As surpresas do amanhã – tão incertas e intensas – o aguardavam. Porém, antes de mergulhar na inconsciência de um sono profundo, conseguiu pensar em algo que pudesse acalentar aquele momento
A escuridão daquela inenarrável noite estava sendo rasgada, pouco a pouco, pelos primeiros raios de sol que emanavam do horizonte.Miguel acordara cedo. Foi contemplar a aurora. Quem sabe aquela não seria a última vez que iria ver o nascer do sol.Entre diálogos secos, olhares furtivos e uma fina névoa de contentamento espalhada pela casa, todos sentaram à mesa. Dona Beatriz, contente, fazia mimos ao filho regresso.- Hum, que café gostoso! – disse Miguel.- Fiz especialmente para você, filho.A mesa do café da manhã rodeava-se, agora, de alegria.Senhor Germano, como sempre, permanecia seriamente calado.Já eram oito horas da manhã quando Zeca propôs:- Vamos mano?- Sim, vamos lá. – respondeu Miguel.Já estavam longe quando D. Beatriz perguntou:- Vão aonde?- Vamos andar por ai, conversar, caminhar pelo bosque. O dia está tão lindo - respondeu Miguel, gritando.- Cuidado! – disse ela.Como caminha
Criou-se um pequeno tumulto. O hospital estava cheio. As pessoas acompanhavam com atenção, o esforço daquele homem que, com uma força sobre-humana carregava o irmão.Os enfermeiros puseram Zeca prontamente na maca e levaram-no até uma sala. Miguel foi impedido de acompanhar o irmão. Até que, antes de adentrarem na última porta à direita daquele escuro corredor, Miguel ouviu:- Ele está vivo. Ele está vivo – gritaram os médicos ao aferir a quase imperceptível pulsação de Zeca, que agora, estava sendo conduzido àquela fria sala de cirurgia.Àquela altura, toda a família já se encontrava no hospital. D. Beatriz acompanhava apreensiva, aqueles instantes de tortura a espera de noticias do filho. Senhor Germano acompanhava tudo com perplexidade e frieza. Joelma e Miguel abraçavam-se, consolando um ao outro. Foi nesse momento que o médico chegou cabisbaixo e disse:- A cirurgia é arriscada. Nós não temos os equipamentos necessários para este procedimento, e, portant
Qual seria finalmente o seu verdadeiro motivo? Quem é você?-Não sei. De repente, alguém que você gostaria de encontrar novamente. Esse poderia ser um bom motivo.O silêncio se estabeleceu entre os dois. Zeca procurou na memória algum fragmento de familiaridade ou algo que pelo me-nos o fizesse reconhecer.-Desculpe, mas esta conversa está muito confusa. Realmente não me lembro. Não quero parecer grosseiro...-Sei que não – interrompeu amavelmente – Mas acho que deve-ríamos apenas jogar conversa fora e deixá-la fluir naturalmente.-Não tenho tempo.Engraçado. Não sabia por que havia dito aquilo. Não tinha nenhuma noção de onde estava ou para onde ia.-Imagino que eu não seja a pessoa por quem procura – falou finalmente.-É sim. É você mesmo.Zeca suspirou.-Afinal, o que quer de mim?-Vamos caminhar.Ao abrir os olhos, Zeca foi ofuscado pela forte luz do ambiente.Ouviu o ruído da própria maca que o levava
O vulto atravessou a escuridão da noite.Seus passos eram contínuos e precisos.A noite estava silenciosa e somente o som dos seus passos sobre os cascalhos do chão quebrava a monotonia.Lembranças.Muitas lembranças pegavam aquela pessoa desprevenida.Tudo fazia lembrar.Qualquer situação era motivo certo para o passado tornar-se presente com momentos de recordações cruéis e persistentes que não deixavam esquecer nem cicatrizar as feridas.Ao atravessar o bosque, a pequena casa surgiu.Entrou rapidamente e deixou-se cair sobre a cama. O corpo estava cansado e trêmulo.Sabia que, de alguma forma, sua raiva não cessara.Apenas ficara guardada para vir à tona com tal intensidade que o seu desejo de vingança não permitiria mais cautela.
Um copo fumegante alcançou o campo de visão de Miguel.-Você precisa de um café.Joelma continuava linda, mesmo com os cabelos desgrenhados, a roupa amarrotada e o rosto pálido e cansado.Todos estavam exaustos.Apesar dos protestos, conseguiram fazer com que sua mãe fosse descansar, com a promessa de um telefonema para qualquer noticia.A declaração ao delegado sobre o ocorrido não ajudou muito. Tudo acontecera rápido demais. Tudo muito trágico e dolorosamente familiar.-Sei que pode parecer um pouco insensível – disse Joelma, inter-rompendo seus pensamentos – Mas, não consigo pensar em nada, nem questionar e nem saber a razão.Dava pra perceber que ela estava sofrendo.-É horrível pensar que tem alguém que odeia tanto meu marido ao ponto de querer matá-lo.Sentiu-se culpado por querer sentir o toque e a pele da mulher do irmão para o qual agora teria uma eterna dívida de gratidão.Quem estaria por trás disso?Pelo q
Germano empurrou a porta e deixou que Beatriz pas-sasse primeiro como mandam os bons modos e o cavalheirismo.Ela se demorou um pouco receosa. Afinal, não é agradável para uma mãe ver um filho naquele estado.-Ele está horrível – falou chorosa.Germano, como de costume, permaneceu em silêncio.-Horrível – repetiu Beatriz – A gravata está torta e o nó está todo errado!-Mãe, por favor! – protestou inutilmente Miguel.Três longos anos se passaram e as feridas que pareciam que nunca iriam cicatrizar, finalmente estavam fechando.E iriam cicatrizar.Não tão rapidamente como o ferimento causado pelo tiro que acertou o ombro de Miguel, mas seriam cicatrizadas.A vida continuou e Miguel pôde finalmente sepultar os mortos e exorcizar seus fantasmas. E agora tentaria novamente ser feliz no dia do seu próprio casamento.-Beatriz – falou finalmente Germano – deixe o garoto se arrumar em paz. Só concordei em vir até o quarto por que vo
Exatamente oito dias depois da tragédia que abalou toda a pacata cidade de Folhagem, Germano e Beatriz saíam abraçados, tristes e cabisbaixos da igreja.Foram prestigiar a missa de sétimo dia das vitimas de tão bárbaro acontecimento.No final das contas, não fazia diferença os motivos, as causas ou a maldade de cada pessoa envolvida.A morte é sempre um momento triste e solene independente de quem esteja morrendo.Toda a cidade estava enlutada e atônita.Não tinha como não ficar surpreso com toda aquela onda de violência que havia tomado de assalto a pacata cidade.E a aura de mistério que o caso havia ganhado era inevitável.Afinal, quem na verdade matou José Carlos?Teria sido Joelma com todo seu ódio incontido?Ou teria sido Aníbal tomado pela paixão e vendo a morte dos irmãos como principal estratagema para possuir seu grande amor?Talvez ninguém nunca saiba com certeza a resposta.-Nada disso importa mais. Os cul
- Muito interessante, mas impossível de ser provado – atalhou Aníbal.-A essa altura isso não interessa mais.E unindo as palavras à ação, Joelma efetuou um disparo em direção ao delegado Aníbal acertando-lhe o peito. E num movimento rápido, virou-se e disparou mais um tiro em Miguel para logo depois ela própria ser alvejada pelos policiais que ali estavam.E assim terminava uma longa trilha semeada por ódio, tragédias e ressentimentos.Terminava da única forma que poderia terminar: com sangue e sem vencedores.Aníbal, o obsessivo delegado fôra morto pela mulher que era o objeto do seu desejo.Joelma morria amargurada sem ter certeza de ter alcançado sucesso em sua sinistra empreitada.E Miguel caía vitimado pelos seus próprios erros e por aqueles que nem sabia que cometera.E perdia também a cidade de Folhagem. Perdia sua imagem e seu aspecto de cidade pacata e pacífica que tanto seu povo se orgulhava.
- Mas o que é que você está fazendo aqui? Como você descobriu onde Joelma estaria?-Isso não é óbvio Miguel?-Não, não é - interrompeu Joelma – Apesar de todas as provas apontarem para mim, por que se você está aqui é por ter encontrado minha carta que Zeca deve ter escondido, eu não fui a au-tora dos disparos. Quem matou seu irmão foi ele! Eu gostaria muito de ter puxado aquele gatilho, mas não fui eu. Foi ele!-Uma ridícula tentativa de se salvar de sua condenação por homicídio. Que motivos eu teria para assassinar Miguel?-O motivo dele – gritava Joelma – foi o mais mesquinho possível! Sabendo dos meus planos e de que toda a culpa recairia em mim, ele simplesmente atirou em Miguel para depois poder me chantagear e conseguir o que mais quer na vida: eu mesma!Todos olharam para o homem que estava parado ali a sorrir de forma cínica.-Ridículo! Como eu disse, essa é uma teoria absurda. Uma tentativa de se eximir da culpa e escapar da provável con
- A idéia é tão asquerosa assim Joelma?-Isso não é importante. Só não vou ceder às chantagens de ninguém. Sou senhora do meu destino e disso não abro mão, não importa quais serão as conseqüências.-E você acha que essa arma apontada pra mim vai resolver seus problemas? O que vai fazer com meu corpo depois? Como vai explicar meu desaparecimento para toda a cidade?-Pra quê explicar? Basta sumir da cidade...- E sua tão sonhada vingança? Como ficaria?Joelma emudeceu por um instante.O Conteúdo do diário era esclarecedor. Não existiam mais dúvidas. Lendo as últimas páginas dava pra deduzir o autor dos disparos, embora ainda não estivessem claros quais eram os motivos.Uma simples semelhança física entre duas mulheres não conseguiria explicar um homicídio.É impressionante como um evento tem o poder de desencadear outros que, aparentemente, não tem nenhum tipo de conexão.Mas está tudo entrelaçado.Esse era o pensa
Se isso não fosse uma permissão divina, nada mais seria.Um momento de desatenção com sua bolsa e o revólver sumiu.Sentia-se frustrada, pois estava tudo planejado.Sua vingança estaria próxima.Enquanto um irmão morria aos poucos, ela faria o outro morrer rapidamente. Estaria vingada e sua vida perderia o sentido. Poderia morrer em paz.Por que, com certeza, para cadeia não iria.Mas, com o revólver desaparecido, Joelma tinha dois proble-mas: não tinha como consumar sua vingança e agora alguém sabia de suas intenções. Podia então esperar um contato para ser chantageada.Foi quando Zeca lhe contou ter visto uma pessoa entrando rapidamente no bosque e, movido pela curiosidade, resolveu investigar qual o objetivo daquela pessoa.Voltou do bosque com ar preocupado, dizendo que nada havia encontrado, mas ela pôde vê-lo depositar algo no guarda-roupa.Algo extremamente familiar.Quando ele saiu pela manhã para conversar com o ir
Ao vislumbrar aquela arma apontada para si, ele pensou o quanto a linha que divide o amor e o ódio é tênue.Lembrou-se da primeira vez que a viu trabalhando de enfermeira e como amou o que viu logo de cara.Lembrou também de todas as investidas e todas as propostas que fez na tentativa de ficar com ela.Todas em vão.A moça parecia ter um objetivo sombrio traçado que guiava sua vida e suas ações. E fosse qual fosse esse objetivo, ele não estava incluído.Mesmo assim, movido pelo sentimento, permaneceu ao lado dela disposto até a servir de cúmplice se necessário fosse.Porém, não demorou para que ela começasse um relacionamento com um dos rapazes de uma das mais tradicionais famílias da cidade, fato esse que muito o entristeceu.Sofria muito com a visão da felicidade de sua amada com aquele rapaz, afinal como poderia competir ele pelo amor de uma mulher muito mais jovem tendo ela encontrado alguém de sua mesma faixa de idade?Mesmo toma
A oportunidade surgiu enquanto trabalhava no hospital da cidade e descobriu que José Carlos havia ficado doente.Não foi difícil descobrir o mal que acometia Zeca: ele tinha câncer de um tipo incurável.Em princípio sentiu-se frustrada. Ela queria ser a responsável pela morte dos dois irmãos. Vivia para isso.Por outro lado, sentiu-se satisfeita em constatar que ele iria sofrer muito antes de morrer. E ela queria presenciar de perto esse sofrimento.Mas, na condição de enfermeira não ficaria perto o bastante para se deliciar com toda aquela situação.Por isso, resolveu aproximar-se e seduzi-lo.Entrou no quarto em que ele repousava no hospital e apresentou-se:-Prazer senhor José Carlos. Serei sua enfermeira por esses dias. Meu nome é Joelma.
Felicidade.Essa era a emoção que a moça sentia ao sair da periferia de Folhagem rumo aquela cidade de Minas Gerais.Não iria para a capital era verdade. Mas, com certeza seria para um lugar maior e melhor que Folhagem.E já não era sem tempo. Morar na periferia de um fim de mundo daquele era o cúmulo.Pena que as circunstâncias não eram as melhores.Recentemente havia recebido a visita de sua meia-irmã em sua casa devido a uma doença que havia contraído.Nada de muito grave, mas, algo que merecia cuidado.Helena se disponibilizou a passar, ao menos, um final de semna em Folhagem para auxiliá-la no que precisasse.Ela prontamente aceitou.Amava a irmã com todas as forças e a tinha como a única pessoa querida e confiável no mundo. Por isso estar com ela era sem-pre uma situação agradável.No dia marcado para a chegada de Helena, esta demorou bem mais de chegar que o previsto e, quando chegou, surgiu radian-te de felicidade.A