O vulto atravessou a escuridão da noite.
Seus passos eram contínuos e precisos.
A noite estava silenciosa e somente o som dos seus passos sobre os cascalhos do chão quebrava a monotonia.
Lembranças.
Muitas lembranças pegavam aquela pessoa desprevenida.
Tudo fazia lembrar.
Qualquer situação era motivo certo para o passado tornar-se presente com momentos de recordações cruéis e persistentes que não deixavam esquecer nem cicatrizar as feridas.
Ao atravessar o bosque, a pequena casa surgiu.
Entrou rapidamente e deixou-se cair sobre a cama. O corpo estava cansado e trêmulo.
Sabia que, de alguma forma, sua raiva não cessara.
Apenas ficara guardada para vir à tona com tal intensidade que o seu desejo de vingança não permitiria mais cautela.
Um copo fumegante alcançou o campo de visão de Miguel.-Você precisa de um café.Joelma continuava linda, mesmo com os cabelos desgrenhados, a roupa amarrotada e o rosto pálido e cansado.Todos estavam exaustos.Apesar dos protestos, conseguiram fazer com que sua mãe fosse descansar, com a promessa de um telefonema para qualquer noticia.A declaração ao delegado sobre o ocorrido não ajudou muito. Tudo acontecera rápido demais. Tudo muito trágico e dolorosamente familiar.-Sei que pode parecer um pouco insensível – disse Joelma, inter-rompendo seus pensamentos – Mas, não consigo pensar em nada, nem questionar e nem saber a razão.Dava pra perceber que ela estava sofrendo.-É horrível pensar que tem alguém que odeia tanto meu marido ao ponto de querer matá-lo.Sentiu-se culpado por querer sentir o toque e a pele da mulher do irmão para o qual agora teria uma eterna dívida de gratidão.Quem estaria por trás disso?Pelo q
Miguel!A voz de sua mãe chegou aos seus ouvidos.-Sim, mãe?-Achou seu irmão?-Acho que sim – respondeu estreitando os olhos à procura do desertor.-Então vá chamá-lo!Zeca balançava tranquilamente sobre a rede amarrada em dois troncos de figueira.Não abriu os olhos quando ouviu o som de passos se aproximando.-Você conseguiu me achar.-É – sentou-se no chão apoiando as costas em uma das árvores – Não deu pra te dar cobertura por muito mais tempo. Você vai ter que ir nesse evento.-É, parece que sim. Será que não haveria uma maneira de mamãe me liberar desse tormento? Tenho tantas coisas para pen-sar, resolver... Por exemplo, já sei o que vou fazer pelo resto da vida: vou me dedicar à música.Miguel riu.-Assim como você queria ser astrônomo!-Confesso que foi apenas um sonho. Mas desta vez, vou me dedicar à arte das melodias. Mudarei meu nome para algo extravagante e totalmente original.José Carl
Já passavam das duas da manhã e a sala de espera do hospital, agora silenciosa, abrigava parentes aflitos e angustiados a espera de noticias.Miguel e Joelma ainda estavam inclusos nessa categoria.Haviam passado mais de 48 horas e nenhuma informação.Joelma dormia apoiada em seu ombro vencida pela exaustão. Ele mantinha-se acordado.Seu desejo o mantinha acordado.Estava queimando por dentro.-Meu Deus, isso é loucura! Meu irmão entre a vida e a morte e eu tendo pensamentos eróticos com a mulher dele!Miguel afastou as mechas ainda úmidas do banho, olhando- se no retrovisor.-Não se preocupe cara. Tá bonito. Não é a toa que se parece comigo!Ao contrário do irmão, Zeca não teve tanto esmero ao vestir-se para a festa.Miguel fôra bastante cuidadoso ao escolher cada detalhe do que vestiria, afinal de contas mesmo sendo gêmeo, isso não sig-nificava que ele possuía o charme do irmão.Mesmo assim, o fato de Zec
A festa transcorreu bem, sem nenhum incidente exceto o fato de Zeca ter sumido por duas horas para retornar com um sorriso largo e os olhos brilhantes.-Ih, já vi que viu um passarinho verde!-Verde não, meu irmão. Azul, amarelo, vermelho, bicolor, tricolor... Todas as cores possíveis.“É mulher” – pensou Miguel.Seu irmão tinha uma facilidade para se apaixonar surpreendente.-Quem é dessa vez?Ofereceu seu saquinho de amendoins onde o irmão se serviu de alguns grãos e começaram a caminhar.-Por acaso seria a musa para suas inspirações musicais?-Você é muito esperto!-Sou seu irmão gêmeo, lembra? Posso ler seus pensamentos.Mais tarde, deitados em suas respectivas camas, os irmãos ain-da conversavam.Miguel ficou sabendo que Zeca havia marcado um encontro para a próxima sexta, dali a cinco dias, onde iria ser comemorado o aniversário de um vereador da cidade.Porém, o mais importante, Zeca não havia contado.
Miguel ouviu alguém pigarrear e levantou os olhos de uma revista que pegara para distrair a mente.Tocou levemente no braço de Joelma.Esta despertou de imediato.-O senhor José Carlos já foi operado. As balas foram retiradas e apesar de uma delas ter perfurado o abdômen, não atingiram nenhum órgão vital. A cirurgia foi muito delicada, mas ele resistiu bem. Amanhã ele já deve poder retornar ao hospital da cidade de Folhagem.-Graças a Deus! Podemos vê-lo doutor?-Infelizmente não. Ele está agora em observação. Vamos ver como ele reage as primeiras 12 horas.Dito isto, o médico afastou-se.-O doutor está certo –tentou consolar Miguel – Ele está muito fraco e precisamos evitar qualquer tipo de emoção. Ele tem que se recuperar. O importante é que o pior já passou.Joelma assentiu e se jogou em uma cadeira próxima.-Deve estar sendo difícil pra você também não é?Miguel sentiu aquele frio na barriga.-Sim. Muito. – murmur
Porém, antes de ir embora, tinha que obter respostas para algumas questões não respondidas.Quem tentou lhe matar? Por que tentaram lhe matar? Alguém tinha muito que explicar.Miguel nunca fôra violento, mas era um homem de ação. Iria até o fundo para descobrir o que estava acontecendo na outrora pacifica Folhagem.Visitaria o delegado Aníbal assim que saísse do hospital. Na verdade, antes disso, precisava dormir. Talvez algumas horas de sono ajudassem a clarear sua mente que se encontrava congestionada de perguntas.Porém, como dormir frente à tamanha agitação?Como locomover-se atrás de respostas se agora tinha que andar com dois policiais em seus calcanhares a fazer-lhe proteção?Afinal, ele ainda era o principal alvo. O assassino, fosse quem fosse, não mirou em Zeca. O irmão que, heroicamente, jogou-se frente à bala.A lembrança do momento exato do sacrifício do irmão ficara em sua mente como um vulto confuso.Aquele crucial moment
A mãe se mostrou surpresa.Miguel se perguntou se tamanho espanto era por que a pergunta soara absurda ou se era pelo fato dele ter achado estranho tão banal detalhe.-Não sei por que você está me fazendo uma pergunta tão boba.-Ora mãe! Pare com isso. Não sou mais nenhuma criança. Do jeito que Zeca era vaidoso com os cabelos por que ele haveria de agredir seu próprio senso estético raspando a cabeça? Está na cara de que algo está errado e vocês estão me escondendo isso.-O problema não sou eu. Por mim eu tinha te contado, mas Zeca preferiu contar ele mesmo a você.-Contar o que?-Ele ia te dizer naquela manhã em que atiraram em você.Miguel começava a ficar impaciente com toda aquela enrolação de sua mãe.Procurou controlar-se. Sabia que a mãe era assim mesmo: para contar uma história dava voltas e mais voltas. Respirou fundo tentando se acalmar.-Ele ia me dizer o que?-Acho melhor esperar ele acordar pra te contar. Zeca
Miguel sentou-se.De repente estava tudo claro em sua cabeça. Que outro motivo haveria para Zeca, um homem tão vaidoso ter raspado todo o cabelo?-Toda a cidade já sabia, mas mesmo assim seu irmão não queria que nós lhe contássemos. Ele fez todo mundo prometer ficar em silêncio sobre o assunto. Ele queria te contar.Câncer terminal! Era difícil digerir aquela noticia.Mesmo que seu irmão não tivesse sido vítima daquela bala, iria falecer do mesmo jeito.Ao saber da noticia, tudo ficara repentinamente claro. O detalhe que lhe incomodava não era único. Eram vários. Zeca estava pálido e magro.Mais uma vez o remorso tomava conta de seu ser. Estava tão preocupado com seus pensamentos impróprios acerca de Joelma que nem notara a situação do irmão.Sentia-se a pior das criaturas.Em meio ao remorso e a tristeza, um pensamento acenava distante em sua cabeça. Existia um motivo para que Joelma o tenha fascinado de forma tão imediata.Pens
Germano empurrou a porta e deixou que Beatriz pas-sasse primeiro como mandam os bons modos e o cavalheirismo.Ela se demorou um pouco receosa. Afinal, não é agradável para uma mãe ver um filho naquele estado.-Ele está horrível – falou chorosa.Germano, como de costume, permaneceu em silêncio.-Horrível – repetiu Beatriz – A gravata está torta e o nó está todo errado!-Mãe, por favor! – protestou inutilmente Miguel.Três longos anos se passaram e as feridas que pareciam que nunca iriam cicatrizar, finalmente estavam fechando.E iriam cicatrizar.Não tão rapidamente como o ferimento causado pelo tiro que acertou o ombro de Miguel, mas seriam cicatrizadas.A vida continuou e Miguel pôde finalmente sepultar os mortos e exorcizar seus fantasmas. E agora tentaria novamente ser feliz no dia do seu próprio casamento.-Beatriz – falou finalmente Germano – deixe o garoto se arrumar em paz. Só concordei em vir até o quarto por que vo
Exatamente oito dias depois da tragédia que abalou toda a pacata cidade de Folhagem, Germano e Beatriz saíam abraçados, tristes e cabisbaixos da igreja.Foram prestigiar a missa de sétimo dia das vitimas de tão bárbaro acontecimento.No final das contas, não fazia diferença os motivos, as causas ou a maldade de cada pessoa envolvida.A morte é sempre um momento triste e solene independente de quem esteja morrendo.Toda a cidade estava enlutada e atônita.Não tinha como não ficar surpreso com toda aquela onda de violência que havia tomado de assalto a pacata cidade.E a aura de mistério que o caso havia ganhado era inevitável.Afinal, quem na verdade matou José Carlos?Teria sido Joelma com todo seu ódio incontido?Ou teria sido Aníbal tomado pela paixão e vendo a morte dos irmãos como principal estratagema para possuir seu grande amor?Talvez ninguém nunca saiba com certeza a resposta.-Nada disso importa mais. Os cul
- Muito interessante, mas impossível de ser provado – atalhou Aníbal.-A essa altura isso não interessa mais.E unindo as palavras à ação, Joelma efetuou um disparo em direção ao delegado Aníbal acertando-lhe o peito. E num movimento rápido, virou-se e disparou mais um tiro em Miguel para logo depois ela própria ser alvejada pelos policiais que ali estavam.E assim terminava uma longa trilha semeada por ódio, tragédias e ressentimentos.Terminava da única forma que poderia terminar: com sangue e sem vencedores.Aníbal, o obsessivo delegado fôra morto pela mulher que era o objeto do seu desejo.Joelma morria amargurada sem ter certeza de ter alcançado sucesso em sua sinistra empreitada.E Miguel caía vitimado pelos seus próprios erros e por aqueles que nem sabia que cometera.E perdia também a cidade de Folhagem. Perdia sua imagem e seu aspecto de cidade pacata e pacífica que tanto seu povo se orgulhava.
- Mas o que é que você está fazendo aqui? Como você descobriu onde Joelma estaria?-Isso não é óbvio Miguel?-Não, não é - interrompeu Joelma – Apesar de todas as provas apontarem para mim, por que se você está aqui é por ter encontrado minha carta que Zeca deve ter escondido, eu não fui a au-tora dos disparos. Quem matou seu irmão foi ele! Eu gostaria muito de ter puxado aquele gatilho, mas não fui eu. Foi ele!-Uma ridícula tentativa de se salvar de sua condenação por homicídio. Que motivos eu teria para assassinar Miguel?-O motivo dele – gritava Joelma – foi o mais mesquinho possível! Sabendo dos meus planos e de que toda a culpa recairia em mim, ele simplesmente atirou em Miguel para depois poder me chantagear e conseguir o que mais quer na vida: eu mesma!Todos olharam para o homem que estava parado ali a sorrir de forma cínica.-Ridículo! Como eu disse, essa é uma teoria absurda. Uma tentativa de se eximir da culpa e escapar da provável con
- A idéia é tão asquerosa assim Joelma?-Isso não é importante. Só não vou ceder às chantagens de ninguém. Sou senhora do meu destino e disso não abro mão, não importa quais serão as conseqüências.-E você acha que essa arma apontada pra mim vai resolver seus problemas? O que vai fazer com meu corpo depois? Como vai explicar meu desaparecimento para toda a cidade?-Pra quê explicar? Basta sumir da cidade...- E sua tão sonhada vingança? Como ficaria?Joelma emudeceu por um instante.O Conteúdo do diário era esclarecedor. Não existiam mais dúvidas. Lendo as últimas páginas dava pra deduzir o autor dos disparos, embora ainda não estivessem claros quais eram os motivos.Uma simples semelhança física entre duas mulheres não conseguiria explicar um homicídio.É impressionante como um evento tem o poder de desencadear outros que, aparentemente, não tem nenhum tipo de conexão.Mas está tudo entrelaçado.Esse era o pensa
Se isso não fosse uma permissão divina, nada mais seria.Um momento de desatenção com sua bolsa e o revólver sumiu.Sentia-se frustrada, pois estava tudo planejado.Sua vingança estaria próxima.Enquanto um irmão morria aos poucos, ela faria o outro morrer rapidamente. Estaria vingada e sua vida perderia o sentido. Poderia morrer em paz.Por que, com certeza, para cadeia não iria.Mas, com o revólver desaparecido, Joelma tinha dois proble-mas: não tinha como consumar sua vingança e agora alguém sabia de suas intenções. Podia então esperar um contato para ser chantageada.Foi quando Zeca lhe contou ter visto uma pessoa entrando rapidamente no bosque e, movido pela curiosidade, resolveu investigar qual o objetivo daquela pessoa.Voltou do bosque com ar preocupado, dizendo que nada havia encontrado, mas ela pôde vê-lo depositar algo no guarda-roupa.Algo extremamente familiar.Quando ele saiu pela manhã para conversar com o ir
Ao vislumbrar aquela arma apontada para si, ele pensou o quanto a linha que divide o amor e o ódio é tênue.Lembrou-se da primeira vez que a viu trabalhando de enfermeira e como amou o que viu logo de cara.Lembrou também de todas as investidas e todas as propostas que fez na tentativa de ficar com ela.Todas em vão.A moça parecia ter um objetivo sombrio traçado que guiava sua vida e suas ações. E fosse qual fosse esse objetivo, ele não estava incluído.Mesmo assim, movido pelo sentimento, permaneceu ao lado dela disposto até a servir de cúmplice se necessário fosse.Porém, não demorou para que ela começasse um relacionamento com um dos rapazes de uma das mais tradicionais famílias da cidade, fato esse que muito o entristeceu.Sofria muito com a visão da felicidade de sua amada com aquele rapaz, afinal como poderia competir ele pelo amor de uma mulher muito mais jovem tendo ela encontrado alguém de sua mesma faixa de idade?Mesmo toma
A oportunidade surgiu enquanto trabalhava no hospital da cidade e descobriu que José Carlos havia ficado doente.Não foi difícil descobrir o mal que acometia Zeca: ele tinha câncer de um tipo incurável.Em princípio sentiu-se frustrada. Ela queria ser a responsável pela morte dos dois irmãos. Vivia para isso.Por outro lado, sentiu-se satisfeita em constatar que ele iria sofrer muito antes de morrer. E ela queria presenciar de perto esse sofrimento.Mas, na condição de enfermeira não ficaria perto o bastante para se deliciar com toda aquela situação.Por isso, resolveu aproximar-se e seduzi-lo.Entrou no quarto em que ele repousava no hospital e apresentou-se:-Prazer senhor José Carlos. Serei sua enfermeira por esses dias. Meu nome é Joelma.
Felicidade.Essa era a emoção que a moça sentia ao sair da periferia de Folhagem rumo aquela cidade de Minas Gerais.Não iria para a capital era verdade. Mas, com certeza seria para um lugar maior e melhor que Folhagem.E já não era sem tempo. Morar na periferia de um fim de mundo daquele era o cúmulo.Pena que as circunstâncias não eram as melhores.Recentemente havia recebido a visita de sua meia-irmã em sua casa devido a uma doença que havia contraído.Nada de muito grave, mas, algo que merecia cuidado.Helena se disponibilizou a passar, ao menos, um final de semna em Folhagem para auxiliá-la no que precisasse.Ela prontamente aceitou.Amava a irmã com todas as forças e a tinha como a única pessoa querida e confiável no mundo. Por isso estar com ela era sem-pre uma situação agradável.No dia marcado para a chegada de Helena, esta demorou bem mais de chegar que o previsto e, quando chegou, surgiu radian-te de felicidade.A